A
obrigatoriedade da vacina para conter a epidemia da varíola foi o assunto de
ordem pública que marcou a história do Brasil no início do século 20. Em 1904,
no Rio de Janeiro (capital do país naquela época) houve um "quebra-quebra
geral" do povo revoltado com a decisão do presidente da época, Rodrigues
Alves, em consonância com a visão do médico sanitarista Oswaldo Cruz, de impor
a vacinação contra a varíola em todo o país, por meio de um projeto de lei aprovado
pelo Congresso Nacional. Os que se revoltaram foram foram punidos e até mesmo
enviados à uma prisão no Acre.
Documento
de posse e sob a guarda da Câmara Municipal de Piracicaba, transcrito pela
arquivista Giovanna Fenili Calabria - conforme anexo abaixo -, demonstra que a
cidade se antecipou na obrigatoriedade da vacina, ao constatar os primeiros
casos de varíola alguns anos antes da revolta nacional. Lei datada de 23 de
novembro de 1895 tratava da obrigatoriedade da vacinação na cidade. O decreto
que regulamentava a funcionalidade desta lei tornava obrigatório a vacinação de
crianças a partir de seis meses de idade à adultos de 45 anos, conforme dizia o
primeiro artigo da lei.
Os
vacinados eram procurados pelo "comissário vacinador", como era
denominado o agente de saúde. O parágrafo único dizia que “em tempo de epidemia
de varíola, as crianças, desde 30 dias, deveriam ser vacinadas, exceto quando
não recomendado por médico”. A dose, segundo o texto oficial, era
obrigatória de sete em sete anos. O comissário vacinador deveria retornar às
casas para verificar o resultado da operação oito dias após a primeira
aplicação. A multa prevista para quem se recusasse a tomar a vacina chegava a
dez mil réis (R$ 1.230,00 reais nos dias de hoje). Um atestado de imunização
deveria ser apresentado pelos pais às escolas públicas e privadas para aceite
da matrícula e pelos trabalhadores nas fábricas e demais estabelecimentos.
Os
documentos históricos também apontam para 1889, quando houve outro surto de
varíola na cidade, onde foram registrados 31 casos e cinco óbitos. A lei da
vacinação foi aprovada quase dez anos antes de medida similar tomada pelo
Legislativo no Rio de Janeiro, cuja obrigatoriedade causou a manifestação
popular, conhecida por Revolta da Vacina.
ACERVO - O decreto da lei da
vacina para combater a varíola faz parte do acervo da Câmara Municipal de
Piracicaba e está sob guarda do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo. O
documento integra o livro de registro intitulado Leis e Resoluções de 1892 a
1903. A abertura é datada de 29 de setembro de 1892, assinada pelo então
presidente da Câmara Joviniano Reginaldo Alvim.
Pelos
registros das atas da Câmara, sabe-se que a cidade passava por uma grave
epidemia de varíola. Há pedidos de providências enérgicas da edilidade,
“mobilizando as forças vivas do município, no sentido de combater o mal e
amparar os enfermos”.
Observa-se
que José Pinto de Almeida apresentou seu relatório à Mesa Administrativa da
Santa Casa de Misericórdia, no qual há notícia da epidemia de varíola na
cidade. Os doentes eram recolhidos ao Lazareto São Sebastião, à custa da
Irmandade.
"A
edilidade teve seus trabalhos praticamente paralisados de 5 de março a 5 de
junho. É que grassava na vila uma epidemia de bexigas (varíola) e os
vereadores, com medo dela, não compareciam às reuniões de praxe". Esta foi
a primeira comunicação do presidente Elias de Almeida Prado, na sessão do dia.
CAPITAL - Toda essa movimentação,
em Piracicaba, ocorreu antes da decisão nacional da obrigatoriedade da vacina.
De acordo com informações contidas na Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz (oswaldocruz.fiocruz.br), em 1904 houve uma
grande epidemia de varíola no Rio de Janeiro e, somente neste ano, mais de
3.500 morreram vítimas da doença.
"Das
atividades de combate às doenças que Oswaldo Cruz comandou como diretor de
Saúde Pública, a mais difícil e polêmica foi a campanha de vacinação contra a
varíola", diz o texto. Apesar do país estar enfrentado uma epidemia,
naquela época já havia imunizante contra a varíola, desenvolvido
pelo médico inglês Edward Jenner, disponível no país. A vacinação contra a
varíola era obrigatória no Brasil desde o século XIX, mas a medida nunca foi
cumprida, o que acarretou no aumento abrupto dos casos de varíola.
O texto
da biblioteca virtual afirma ainda que "em razão disso, Oswaldo Cruz
propôs que o governo encaminhasse ao Congresso Nacional um projeto de lei
ratificando a obrigatoriedade da vacinação em todo o país. A proposta concedia
amplos poderes às autoridades sanitárias, incluindo a aplicação de multas aos
refratários, que não obedeciam as leis. Houve a exigência de atestados de
vacinação para matrícula nas escolas, para ingresso no serviço público e até
para a realização de casamentos e viagens", como ocorreu similarmente
alguns anos antes, em Piracicaba.
O projeto
de lei de obrigatoriedade da vacina foi chamado pela população de “Código de
Torturas”. "Oficiais do Exército, monarquistas, operários, adeptos do
positivismo, estudantes, jornalistas e até entre médicos havia adversários da
vacinação, ou seja, em praticamente todos os setores da sociedade. Era
previsível que criassem até um movimento – a Liga contra a Vacina
Obrigatória", afirma o texto do site.
Oswaldo
Cruz e os defensores da vacina sustentavam, segundo o texto, "que ela
havia sido adotada com sucesso em diversos países da Europa. Para seus
detratores, no entanto, a obrigatoriedade era uma clara violação da liberdade
individual e muitos acreditavam que a própria vacina ajudava a propagar a
doença. Havia também um aspecto moral a ser considerado: como os chefes de
família poderiam permitir que suas mulheres fossem obrigadas a desnudar braços
e coxas para receber a inoculação?"
O texto
afirma ainda que "apesar de toda a divergência que gerou, em 31 de outubro
de 1904 a lei da vacinação obrigatória foi aprovada pelo Congresso. A essa
altura os ânimos já estavam mais do que exaltados. A regulamentação da lei,
nove dias depois, acendeu o estopim que faltava: no dia 10 de novembro tinha início
a Revolta da Vacina".
"Durante
uma semana, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio de Janeiro para
protestar. O comércio fechou as portas em várias localidades; o transporte
público entrou em colapso. Em meio à rebelião, uma insurreição militar tentou
depor o presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves. O desfile de 15 de
novembro teve de ser cancelado. Com o apoio de tropas do Exército, Rodrigues
Alves resistiu ao ataque e se negou a demitir Oswaldo Cruz, principal alvo das
manifestações. A decretação do estado de sítio no dia 16 permitiu ao governo
recuperar o controle da situação", segundo a biblioteca.
A revolta
foi contida por meio da violência e o saldo final foi de 30 mortos, 110 feridos
e 945 prisioneiros. "Quase a metade dos detidos foi mandada para o Acre,
onde muitos foram submetidos a trabalhos forçados. Embora vitorioso, Rodrigues
Alves foi obrigado a ceder em pelo menos um ponto: anunciou o fim da vacinação
obrigatória".
"Em
1906, o número de mortes por varíola no Rio havia caído para apenas nove.
Contudo, dois anos depois, uma nova e violenta epidemia elevou o número de
óbitos para mais de 6.500 casos. A revogação da obrigatoriedade cobrava o seu
preço", finaliza o texto.
ACHADOS
DO ARQUIVO - A
série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo
do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligados ao Departamento
Administrativo, criada pelo setor de Documentação, em parceria com o
Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara, às
sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do
acervo da Casa de Leis.
Foto: Davi Negri
Autoria: Martim Vieira Fonte: Câmara de Vereadores de Piracicaba